Literatura e pandemia, por Fábio de Oliveira Ribeiro

11/11/20 | Lutas no Brasil

Onde quer que estejamos, cada um de nós é a síntese de todas as viagens que fez e das que foram feitas pelos nossos antepassados.

por Fábio de Oliveira Ribeiro

De maneira geral, podemos dizer que não existe literatura que não seja de viagem ou que deixe de narrar uma jornada exemplar.

A Ilíada narra a viagem de Páris à cidade de Menelau e seu retorno para Troia acompanhado da esposa dele. O rapto ou fuga de Helena se torna um pretexto para a expedição militar comandada por Agamemnon. Finda a guerra, Odisseu faz uma longa e tortuosa viagem de retorno à Ítaca. O tema da Odisseia não é muito diferente do da Ilíada. Homero é o pai da literatura de viagem ocidental.

Antes de narrar a história dos gregos, Homero relata as histórias de várias outras civilizações que ele teria visitado. A viagem dele é tanto geográfica quanto cultural e temporal. O leitor é convidado a acompanhá-lo onde quer que ele resolva ir.

O livro dos hebreus relata a viagem do patriarca deles de Ur até a terra que supostamente lhe foi prometida por deus. O povo a que ele dá origem é escravizado e levado para o Egito, retorna para casa sob a liderança de Moisés. Algum tempo depois os hebreus são novamente escravizados e levados para a Babilônia, de onde são libertados por Ciro II e uma vez mais retornam para casa.

Do outro lado do mundo, as tradições budistas narram a viagem de Sidarta Gautama, primeiro do palácio até as áreas mais pobres da cidade. E depois para fora do reino do pai dele. Em determinado momento, ele decide viajar para dentro de si mesmo e encontrar a iluminação. Quando atinge seu objetivo ele está pronto para viajar espalhando aquilo que aprendeu. Ele nasceu no Nepal e morreu na Índia.

O poema épico dos hindus também relata viagens. Yudhishthira, o líder dos Pandavas, joga dados com Duryodhana, que se fez representar por Sakuni. Ele perde tudo e os Pandavas são obrigados a abandonar Hastinapura. O Mahabharata registra esse deslocamento e os conflitos subsequentes. No final de sua jornada, Yudhishthira adquire um conhecimento verdadeiro viajando para o inferno onde encontra os irmãos e para o paraíso onde reencontra os Kauravas, seus inimigos mortais.

É impossível não notar que a saga de Alexandre, o Grande, narrada por Plutarco, é também a história do deslocamento dele e do exército macedônico da Europa para o Egito, do Egito para a Pérsia e de lá para a Índia. Ele morreu durante a viagem de volta à Babilônia e o cadáver dele foi roubado e transportado para Alexandria.

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Entre os romanos a literatura de viagem está presente tanto na Eneida, poema épico que narra a viagem de Eneias de Troia até a península itálica onde ele funda Roma, quanto no monumental Ab Urbe Condita Libri. Tito Lívio narra os conflitos políticos na cidade eterna e as campanhas militares dos romanos, primeiro nas cidades próximas a Roma e depois na Espanha, norte da África, na Grécia e na Ásia Menor.

O tema da viagem está presente nos dois livros de Júlio Caesar. Num ele narrou sua viagem transalpina e a guerra, contra as tribos lideradas por Vercingetórix, para submeter a Gália ao domínio romano. No outro ele narra a guerra civil travada contra Pompeu, que o levou até o Egito.

Inspirado nos poemas épicos da antiguidade, Dante Alighieri narra sua viagem ao Inferno, ao Purgatório e ao Céu. Marco Polo narrou sua viagem à Ásia. Quinze séculos antes dele, Chan Ch’ien concluiu sua missão diplomática ao retornar à capital chinesa dando informações detalhadas sobre um mundo até então desconhecido na China. Ele havia permanecido 13 anos viajando e conheceu diversas cidades no Irã helenizado.

Susanoo aparece em várias histórias da tradição xintoista japonesa. Uma delas narra o comportamento impossível de Susanoo contra Izanagi. Cansado de sofrer ataques de Susanoo, Izanagi desapareceu no Yomi. Susanoo fica desgostoso. Ele tinha negócios inacabados para resolver primeiro. Susanoo então foi para Takamagahara (céu) para dizer adeus a sua irmã, Amaterasu. Ela sabia que seu irmão não tinha boas intenções em mente e se preparou para a batalha. Pensando que Susanoo queria o Takamagahara para si mesmo ela vai ao encontro dele, mas o combate é evitado porque ambos chegam a um acordo.

Beowulf, herói do poema homônimo, cavalga as vagas até chegar no reino Hrothgar. Lá ele derrota o terrível monstro Grendel. Depois viaja até o esconderijo da mãe dele. Ele retorna ao reino de Hrothgar dizendo que derrotou e matou sua inimiga, mas entre a versão que ele conta e aquela que descreve o encontro existe uma evidente discrepância.

Siegfried, personagem do poema Der Ring des Nibelungen, viaja de sua terra natal até o reino de Gunther. Após ajudá-lo a derrotar dos reis saxões Liudeger e Liudegast e a conquistar Brünhild na Islândia ele se casa com Kriemhild. Após Siegfried ser morto pelo famigerado Hagen von Tronje, Kriemhild aceita se casar com o rei dos hunos. Sem saber que Kriemhild planeja se vingar dos assassinos de Siegfried, Etzel envia embaixadores a Worms e eles conseguem convencer Gunther e Hagen da boa fé do soberano dos hunos. A comitiva de Gunther viaja para o país dos hunos onde a terrível vingança de Kriemhild é levada a efeito causando inúmeras mortes.

As viagens portuguesas durante o reinado de D. Manuel, o Venturoso, constituem o tema central do poema épico Os Lusíadas de Luis Vaz de Camões. O Brasil nasceu para o mundo europeu através da Carta que Pero Vaz de Caminha enviou ao Rei de Portugal contando as coisas maravilhosas que os portugueses encontraram em Pindorama. Todos os primeiros relatos feitos sobre nosso país – por Pero Magalhães de Gândavo, Hans Staden e outros – constituem literatura de viagem.

O tema da viagem vai se desdobrando ao infinito à medida que nos aproximamos mais e mais da literatura moderna. Os personagens literários se deslocam no espaço, no tempo, dentro de si mesmo, do mundo para a ficção, da ficção para a realidade, nas entranhas do planeta ou fora da galáxia, etc. A literatura de viagem nos transporta para lugares fantásticos que existem apenas em virtude da capacidade humana de criar meios de transporte e os locais onde eles nos levarão acompanhando os personagens.

A pandemia interrompeu as viagens. Os aviões que transportavam milhões de turistas de um continente para outro estão parados. Civilizados por literaturas de viagem, os seres humanos são impelidos a viajar mas se encontram confinados em suas casas acompanhados apenas dos seus familiares, dos seus livros e da internet.

Onde quer que estejamos, cada um de nós é a síntese de todas as viagens que fez e das que foram feitas pelos nossos antepassados. Mesmo imobilizados pela pandemia, nós continuamos nos deslocando, mas nesse momento quase todas nossas viagens são imaginárias. A explosão de felicidade quando pudermos novamente nos deslocar freneticamente de um lugar para outro será imensa. Mas até lá… fique em casa.

FONTE:GGN
FOTO: REPRODUÇÃO

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