É necessário saber a relevância que as creches públicas têm para os pequenos e as mães
Qual a importância das creches para as mulheres? Elas foram fundamentais, na medida em que propiciaram a ida das mulheres para o mercado de trabalho. Sabemos que em nossa cultura patriarcal os cuidados com as crianças pequenas sempre estiveram nas mãos das mães, sem apoio dos pais em boa parte das casas. Por questões culturais, as mulheres ficaram encarregadas das necessidades diárias da família. Poder deixar seu filho na creche, portanto, foi um marco importantíssimo na história feminina.
Vejamos que uma bebê, no começo de sua vida, tem nos seus primeiros ambientes, família e creche fontes de aprendizado e desenvolvimento de habilidades motoras, cognitivas e sensoriais. A criança, especialmente as de zero a três anos, está cada dia criando seu próprio repertório nesses espaços, que são suas primeiras noções de mundo. Para um bom desenvolvimento nesta fase, ela precisa estar em um ambiente acolhedor. Nesse sentido, a evolução das creches e da concepção de educação infantil propiciou não só transformações sociais com relação ao mercado de trabalho, mas também no contexto educacional, permitiu uma evolução de um olhar assistencialista para um olhar pedagógico de desenvolvimento de habilidades emocionais e sociais dos pequenos.
As primeiras creches no Brasil foram instituídas em 1898, sobretudo no Rio de Janeiro. Em 1985, com o término do Regime Militar, foram criadas novas políticas públicas em relação a elas. Já em 1988, com a nova Constituição Federal, institui-se a obrigação da aplicação de 50% de recursos da Educação para programas de alfabetização e em 1990 criou-se o Estatuto da Criança e do Adolescente. Mais tarde, em 1996, foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Durante esse processo, evolui-se de uma concepção higienista da educação – voltada para a saúde pública e prevenção de doenças – para um atendimento efetivamente pedagógico, respeitando os direitos da criança e dando a perspectiva de uma formação integrada, focada no desenvolvimento infantil. Nesse período, então, há a criação de ofertas curriculares e materiais para a educação infantil, que se estabeleceram como políticas públicas.
A partir daí, a criança começa a ser reconhecida como um ser que existe e com necessidades específicas. Um ser ativo e participativo de seu processo de aprendizado. Observando este salto, vejamos que nem sempre foi assim, as crianças em períodos como a Idade Média, quando já tinham idade suficiente para não depender mais das mães ou amas de leite, já eram “misturadas” aos adultos: ou seja, não havia concepção de infância. Em 1973, o historiador Phillipe Ariès escreveu a obra “História Social da Criança e da Família”, na qual aponta que na sociedade medieval o conceito de infância não existia. Isso não significa que as crianças eram desprezadas. O conceito de infância não deve ser confundido com atenção aos filhos. Corresponde a uma tomada de consciência do significado do ser criança, em particular que elas têm vulnerabilidades, consciência esta que não existia. No livro, o historiador aborda a importância das brincadeiras, do ensino diferenciado e da “invenção” da infância a partir do momento em que as mulheres passam a ter menos filhos e estes têm uma sobrevida maior. A criança é, primordialmente, um ser distinto do adulto, possuidora de valores próprios, como fantasia, ingenuidade e ludicidade.
O desenvolvimento da escola acompanha essa evolução. Com o sentimento da infância e ao longo do tempo, com a criação de leis para a educação infantil, as crianças conquistaram espaços. É preciso lembrar que as diretrizes curriculares nacionais trazem as propostas pedagógicas da educação infantil que consideraram a criança como centro do planejamento curricular e sujeito de direitos, que se espelha e aprende na coletividade, que produz cultura.
Nesse aspecto, é muito importante destacar como se dá a questão racial em sala de aula, pois a ausência do letramento racial representa uma dificuldade para o bom desenvolvimento das crianças negras nesse processo educacional. Dentro da escola, é essencial dar escuta para a história das famílias negras, pois somos reflexos das narrativas familiares, da nossa colonização, para que as crianças negras tenham pertencimento. Infelizmente, mesmo com essa evolução na Educação Infantil no contexto pedagógico, as pessoas negras ainda são desumanizadas e sua história reprimida, ou seja, ainda reproduzimos uma cultura eurocêntrica e um padrão de beleza branco. Muitas vezes, os currículos pedagógicos acabam por fortalecer o racismo. O movimento negro já vem falando sobre isso há muito tempo e vem pedindo uma mudança, na medida em que reforça que o rendimento escolar está ligado à afetividade, e se crianças negras têm tratamento diferente das crianças brancas, isso certamente vai refletir em seu processo de aprendizado. Para termos avanços educacionais é preciso colocar em questão a autoestima da criança negra. É preciso também inserir a cultura e a história negra dentro da sala de aula, por isso a lei 10.639 é um marco na história da Educação Infantil.
É sabido que o Brasil foi o país que trouxe mais escravizados africanos e este legado ainda está presente em toda nossa sociedade. Ainda assim, não existe um protagonismo negro e, na escola, não é diferente. Veja, o racismo não é responsabilidade só de quem sofre, é uma responsabilidade de toda a sociedade. Portanto, a partir do momento em que o tratamento no âmbito escolar é diferenciado para brancos e negros, estamos fortalecendo e replicando o racismo estrutural. É preciso que os professores de toda a cadeia educacional e, especialmente, de Educação Infantil, tenham essa consciência. O professor também precisa ser ensinado a tratar a questão racial na escola.
Em “Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação”, o filósofo Walter Benjamin afirma que as crianças formam seu próprio mundo. Por isso, a construção da identidade infantil é de extrema importância. No entanto, é muito mais comum no âmbito escolar interferências que reforçam o contrário, embora tenha havido um grande avanço na educação de crianças, ainda se ignora bastante o espaço da Educação Infantil.
É necessário saber a importância que as creches públicas têm. Um livro que destaca o tema, com foco na questão da emancipação feminina é “Creche e feminismo, desafios atuais para uma educação descolonizadora”, organizado por Daniela Finco, Márcia Aparecida Gope e Ana Lúcia Gular de Faria. A luta por creches foi uma bandeira muito grande dentro desses enfrentamentos femininos e por duas frentes: contribuição fundamental para a autonomia das mulheres, com um espaço para que as mulheres acessem o direito ao trabalho, uma vez que eram confinadas no cuidado diário dos filhos e impossibilitadas de procurar trabalho, e a independência financeira, autonomia para gerir sua própria vida, emancipação em relação ao homem provedor.
Além disso, foi um dos momentos que reivindicaram o lugar político da criança, no sentido de que elas também têm direito a uma educação de qualidade.
FONTE: REVISTA FÓRUM
FOTO: Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro