Covid e Brasil: uma tragédia de 5.570 cidades em gráficos e mapas

05/03/21 | Lutas no Brasil

Levantamento minucioso mostra os números e estatísticas por trás do maior morticínio da História do país

O dia 26/02/2021 marcou um ano do primeiro caso de Covid-19 registrado no Brasil. Nesse período as estatísticas de casos e óbitos acumulados são assustadoras. O país é o segundo no número total de óbitos pela doença de acordo com a OMS e o terceiro em número total de casos. Os números quando vistos com maior aproximação podem ainda ser mais aterradores.

Ao olharmos os municípios brasileiros percebemos que em vários deles o número de mortos pela Covid-19 já se aproxima do total de mortos na média do que foi observado nesses locais entre 2014 e 2018. A tragédia, porém, não ocorreu do dia para o outro. Havia muitas pistas que chegaríamos onde estamos hoje. A trajetória que abalou milhares de famílias nos mais de 5 mil municípios brasileiros foi construída em passos evolutivos. É essa história de dor e perda que contaremos com mais detalhes nos próximos parágrafos a partir da comparação dos números de mortos da Covid-19 com a média mais recente do total de óbitos nos municípios brasileiros.

A evolução de óbitos no Brasil em cinco anos

Os dados sobre óbitos no Brasil levam dois anos para serem devidamente apurados e divulgados em formato aberto. O último dado disponível é de 2018. A figura abaixo mostra a evolução do número total de óbitos por todas as causas no país entre 2014 e 2018.

Observa-se no gráfico que os números estão sempre acima de 1 milhão de mortos e os três últimos anos são de estabilidade depois de um pequeno crescimento em relação aos dois anos anteriores. Na data que marcou o primeiro ano do primeiro caso de Covid-19 o Brasil contou 249.691 mortos pela doença. Esse dado é apontado no gráfico através da linha horizontal que corta as barras verticais.

Os dados levantados apontam que a média dos valores apontados no gráfico é de aproximadamente 1,282 milhões de óbitos. Ao compararmos o número de mortos pela Covid-19 acumulados em 26/02/2021 com essa estatística concluímos que a doença corresponde a 19,5% dos mortos observados na média de todos os óbitos apurados nos últimos cinco anos de dados disponibilizados. Essa taxa varia muito entre os municípios. No restante deste texto, ao se ler o percentual de mortos nos municípios deve-se entender esse número como a comparação dos óbitos de cada um desses locais com as respectivas médias do total de óbitos contabilizada entre 2014 e 2018.

Distribuição da porcentagem dos mortos por Covid-19 nos municípios brasileiros

O gráfico logo abaixo mostra como se distribui em todos os municípios brasileiros o percentual de mortos por Covid-19 em relação à média que estamos focando neste texto.

Distribuição da porcentagem dos mortos por Covid-19 nos municípios brasileiros

Observa-se na imagem que a grande maioria dos municípios está com valores inferiores a 25%, porém é fácil perceber que há valores que ultrapassam os 50% e ainda que alguns municípios se percebe que a Covid-19 corresponde a mais de 75% da média e em um município específico esse valor já chega a 99%. Isso mesmo, um município brasileiro em 26/02/2021 registrou no total de mortos por Covid-19 quase o mesmo valor do total de mortos por todas as causas possíveis de uma média de cinco anos.

Tendo como referência o percentual de mortos por Covid-19, percebe-se que em todo o Brasil centenas de municípios já ultrapassaram esse marco de 19,5% da média do total de óbitos. O gráfico abaixo mostra como esses municípios se distribuem nos estados brasileiros.

O Estado de São Paulo, que tem o segundo maior número de municípios, destaca-se no gráfico. Porém o que se vê em seguida foge do que se poderia esperar. Estados como Mato Grosso (MT), Amazonas (AM), Pará (PA) e Tocantins (TO) possuem poucos municípios. Veremos mais adiante que esses estados aparecem com destaque também nas listas dos dez municípios com valores de percentual de óbitos maior do que a referência de 19,5% da média de mortos.

A evolução da tragédia em mapas e gráficos

Nos próximos parágrafos mostro como se distribuem os municípios brasileiros em relação ao percentual de mortos por Covid-19 em quatro datas específicas. A ideia é mostrar que houve uma evolução dos números de forma consistente em direção ao quadro que vemos hoje. Escolhi três datas associadas a momentos de pico na primeira e segunda onda da propagação da doença. A quarta data é 26/02/2021. Veja o gráfico abaixo.

As análises são feitas a partir de mapas do Brasil. Aqui pinta-se o mapa de tal forma que as cores mais frias, com tons próximos de azul, referem-se a valores de percentuais de mortos nos municípios menores do que a taxa nacional de 19,5%. Quanto mais baixo esse número, mais fria será a cor. As cores mais quentes, com tons próximos do vermelho, sinalizam municípios com percentuais maiores do que a referência. Quanto maior esse número mais quente será a cor.

Para se ter uma ideia inicial veja abaixo como estava o mapa em 17/03/2020 que corresponde a primeira data com óbitos registrados na base de dados que usamos como referência para este texto.

Como era de se esperar o Brasil todo está pintado em azul, afinal de contas a pandemia estava só começando.

Não demorou nem três meses para que o quadro começasse a mudar e já se percebessem municípios com percentual de mortos pela Covid-19 que ultrapassavam 30% da média. Veja o mapa para o dia 04/06/2020.

Observa-se na figura que no início de junho já começam a ser escritos os primeiros capítulos do que ocorreria em municípios do Amazonas e Pará, principalmente, que já principiam a adquirir tons quentes nas cores que os representam no mapa.

A figura abaixo mostra os dez municípios com maiores taxas de mortos por Covid-19 em relação à média de total de mortos.

Dos dez municípios, sete se localizam no Amazonas (AM) e três no Pará (PA). Naquele dia Tocantins era o único município no Brasil com taxa de mortos por Covid-19 superior a 30% em comparação à sua própria média de óbitos totais entre 2014 e 2018.

Em 6/8/2020 o mapa já está nitidamente mais quente, é o que se pode perceber na imagem abaixo.

O tom azul forte que era predominante até o marco anterior desapareceu do mapa. A escala mostra que já há municípios com taxa de mortalidade da Covid-19 que ultrapassam os 50%. Vê-se que a região Norte e parte do Centro-Oeste o início de predominância dos tons mais quentes ou pelo menos dos tons menos frios.

No gráfico abaixo vê-se uma atualização dos dez municípios com maiores taxas.

e no início de junho de 2020 apenas uma cidade apontava uma taxa superior a 30%, dois meses depois percebe-se que todos os dez municípios ultrapassaram muito essa marca e Paracaima já ultrapassou os 50%.

***

O marco de 06/08/2020 coincide com o início de trajetória de baixa do número de óbitos da primeira onda da Covid. Infelizmente a trégua não durou muito e em 7/1/2021 o Brasil já estava apresentando um novo recorde de número de mortos em um único dia. Veja abaixo como estava o mapa nesse dia.

Pela imagem acima percebe-se que os tons frios fracos prevalecem em todo o leste brasileiro enquanto os tons menos quentes são notados no Centro-Oeste e os tons quentes e fortes dominam o Norte. A escala de cores já mostra que há municípios que ultrapassam os 60%.

Veja na figura abaixo uma atualização do ranking.

Todos os dez municípios da figura acima ultrapassam 50%, sendo que sete deles já ultrapassam a marca de 60%.

E finalmente apontamos o que se percebia no Brasil na data que marca um ano do primeiro caso de Covid-19. Veja o mapa abaixo.

Os tons frios e fracos estão em disputa no leste brasileiro com os tons quentes e fracos. No Centro-Oeste já se vê os tons quentes mais fortes ganhando muito mais espaço, enquanto que no Norte, especialmente no estado do Amazonas, há a constatação da tragédia. A escala de cores já mostra que se ultrapassa perigosamente a taxa de 75% chegando muito próximo de 100%.

Veja abaixo como estava o ranking das cidades.

Pela figura percebe-se que Amazonas (AM) e Pará (PA) voltam a ser prevalecentes no quadro. Vê-se ainda que oito municípios ultrapassam os 75% de mortos e o que é mais assustador, em Faro, município do Pará, constata-se que a Covid-19 em um ano matou o número de pessoas que equivale à média anual de todos os óbitos registrados naquela cidade. Essa parece ser a pior descrição de tragédia para esse pequeno município do Norte brasileiro.

2021 como uma repetição de 2020?

Mais de 250.000 mortos depois a situação parece que não vai melhorar tão cedo. Há atrasos nas campanhas de imunização, percebe-se pouco esforço dos poderes públicos em decretar medidas mais rígidas que forcem distanciamento social, há dúvidas sobre a continuidade do auxílio emergencial que poderia ser um instrumento para diminuição dos impactos da pandemia e mesmo para a redução da mobilidade. Acrescente-se ainda que parte da população parece crer mais em medidas enganosas, muitas vezes espalhadas por quem deveria proteger as pessoas da doença, do que na ciência e no sentido de coletividade.

Parece que por enquanto 2020, com as suas estatísticas aterrorizantes, está prestes a se repetir como tragédia em 2021.

Dados e códigos

Os dados podem ser baixados de duas organizações que trabalham com melhora na qualidade e disponibilização de dados abertos no Brasil.

Os dados relativos ao número de mortes no Brasil entre 2014 e 2018 foram disponibilizados pela Base dos Dados. Já o número de óbitos pela Covid-19 é oriundo do esforço da startup de dados Brasil.io.

O código com o processamento dos dados e as análises pode ser encontrado no Github.

Sobre os autores

Fernando Barbalho — Doutor em Administração pela UnB (2014). Pesquisa e implementa produtos para transparência no setor público brasileiro. Usa R nos finais de semana para investigar perguntas que fogem às finanças públicas.

Charles Novaes de Santana – Cientista da computação, mestre e doutor em mudanças climáticas, com experiência no uso de técnicas de inteligência artificial e de aprendizado estatístico para responder perguntas interdisciplinares. É co-fundador de DataSCOUT, apaixonado por fractais, redes complexas, e por identificar padrões escondidos em amontoados de dados.

Tarssio Barreto – Estudante de doutorado do Programa de Engenharia Industrial da Universidade Federal da Bahia. Dedica o seu tempo ao aprendizado de máquina com particular interesse na interpretabilidade de modelos black box e qualquer desafio que lhe tire o sono!

Leonardo F. Nascimento — Doutor em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos — IESP/UERJ (2013). Pesquisa temas relacionados à sociologia digital e aos métodos digitais de pesquisa. Atualmente é professor do Instituto de Ciência, Tecnologia e Inovação da UFBA.

Henrique Gomide — Professor na Universidade Federal de Viçosa. Mestre e doutor em Psicologia. Trabalhou como cientista de dados na área de saúde suplementar. Tem como principais interesses a aplicação de técnicas quantitativas e inovação nas áreas de saúde e educação.

Guilherme Wanderley – Estudante de Engenharia da Computação na Universidade Estadual de Feira de Santana. Voluntário no Dados Abertos de Feira. Atualmente pesquisando Processamento de Linguagem Natural.

FONTE: REVISTA FÓRUM

Foto: Prefeitura Municipal de Manaus

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