06 de maio de 2021 – A próxima década, 2020-2030, é crucial para o futuro da humanidade. Está em nossas mãos reverter a crise climática.
Se nos próximos anos não formos capazes de começar a diminuir drástica e rapidamente as emissões globais de gases do efeito estufa entraremos num caminho sem volta. Neste sentido, o relatório sobre a Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês) apresentado em 26 de fevereiro último pelo secretariado da Convenção-Quadro das Nações Unidas Sobre a Mudança do Clima (CQNUMC) permite antever que, com os compromissos estatais, a NDC, atualmente assumidos teremos uma redução irrisória de emissões até 2030. O informe foi outro balde de água fria e ao mesmo tempo um banho de realidade que deveria vacinar a sociedade civil, a comunidade internacional e os meios de comunicação contra alguns discursos que, a nosso ver, são ilusoriamente otimistas, que não se baseiam no que indicam os números resultado do compromisso dos Estados.
Comecemos contextualizando o relatório e terminaremos com suas principais conclusões.
1 Preliminares importantes
1.1. Tudo volta a girar em torno da COP26 de Glasgow, de novembro de 2021
Depois que um ano de pandemia global transtornou todas as datas e espaços de encontros e negociação sobre as grandes questões mundiais, e quando se começa a vislumbrar a possibilidade de realização presencial da COP26 de Glasgow em novembro, surgem análises sobre em que situação estamos e sobre como preparar as reuniões/negociações de Glasgow. Torcemos então para que o ano de 2020 tenha sido o único sem negociações climáticas globais.
A última análise, e talvez uma das mais importantes e que mais repercussões provocou, foi a publicação em finais de setembro do relatório Síntese Preliminar das NDC. Mas antes é preciso, para efeito de esclarecimento, contextualizar sua origem.
1.2. Da origem política do relatório Síntese, e de outras questões também muito importantes nas decisões da COP de París, 1/CP.21, que se tomaram em paralelo à aprovação do Acordo de Paris como tratado internacional
De repente tudo começa a ficar mais claro, e mais trágico.
O Acordo de Paris não especifica objetivos de redução de emissões que os países devem cumprir. Se não fosse assim, o acordo nunca teria sido aprovado. O que faz o acordo é definir uma meta de estabilização do aumento da temperatura média global, afirmando que este aumento deverá ficar bem abaixo dos 2 oC e que se se tentará limitar ao 1,5 oC. Este objetivo é, segundo a comunidade científica, muito ambicioso, mas vital para se assegurar a viabilidade dos ecossistemas terrestres e, em última análise, a sobrevivência da espécie humana.
O mesmo acordo deixa nas mãos dos Estados participantes que decidam as reduções de emissões que levarão a cabo para contribuir com o objetivo geral, as quais ficam registradas na Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) que devem ser renovadas a cada cinco anos.
Quando em Paris se decidiu aprovar como tratado internacional um acordo que deixava nas mãos dos Estados a responsabilidade de alcançar, ou não, a meta de estabilização da temperatura, na verdade estava sendo criada uma chance enorme de não se alcançar nunca o objetivo traçado.
Os arquitetos do Acordo de Paris 2015 estavam conscientes disso e se resguardaram tomando um conjunto de Decisões de Paris que foram aprovadas em paralelo. Em nível legal, as Decisões não têm a mesma força legal do Acordo (que é um tratado internacional), mas estão no mesmo nível dos acordos habituais que se tomam em todas as COP. Visto na perspectiva de hoje, insistimos, tudo começa a ficar muito claro, sobretudo se lermos textualmente as Decisões 17, 21 e 25 de Paris, 1/CP.21, que citamos a seguir (os negritos no texto são nossos):
II. Contribuições previstas determinadas em nível nacional
17. Observa com preocupação que os níveis estimados de emissões agregadas dos gases do efeito estufa em 2025 e 2030 resultantes das contribuições previstas determinadas em nível nacional não são compatíveis com os cenários de menos de 2 oC senão que conduzem a um nível projetado de 55 giga toneladas em 2030, e observa também que, para manter o aumento da temperatura média mundial abaixo de 2 oC em relação aos níveis pré-industriais, mediante uma redução das emissões a 40 giga toneladas, ou abaixo de 1,5 oC em relação aos níveis pré-industriais, mediante uma redução das emissões a um nível que se definirá no informe especial mencionado no parágrafo 21, será exigido um esforço de redução das emissões muito maior do que supõem as contribuições previstas determinadas em nível nacional;
21. Convida o Grupo Intergovernamental de Especialistas em Mudanças Climáticas, IPCC (na sigla em inglês), a apresentar, em 2018, um relatório especial sobre os efeitos do aquecimento global de 1,5 oC em relação aos níveis pré-industriais e as trajetórias correspondentes que deveriam seguir as emissões mundiais dos gases do efeito estufa;
25. Decide que as partes deverão apresentar ao secretariado suas contribuições determinadas em nível nacional a que se faz referência no artigo 4 do acordo como mínimo entre 9 e 12 meses antes de que se celebre o período de sessões pertinente da Conferência das Partes na qualidade de reunião das partes no Acordo de Paris, CMA, a fim de facilitar a clareza, transparência e compreensão dessas contribuições, entre outras coisas mediante um relatório de síntese que elaborará o Secretariado;
Esta última decisão é citada, coletada e finalizada temporariamente na Decisão 1/CMA.2 da COP25 de Chile-Madrid de 2019 (a última realizada devido ao COVID); textualmente (os negritos no texto são nossos):
Chile – Madrid: Tempo de Atuar
Lembrando a decisão 3/CMA.1,
10. Recorda o pedido ao secretariado, feito na decisão 1 / CP.21, parágrafo 25, de preparar um relatório de síntese e solicita ao secretariado que apresente o relatório à Conferência das Partes na sua vigésima sexta sessão (novembro de 2020);
E, comentando esta decisão, o Secretariado da UNFCCC destaca na apresentação de seu “relatório de Síntese das NDC” o seguinte:
O relatório de síntese das NDCs é preparado em resposta aos pedidos da COP 21 (Paris, 2015) e da CMA 2 (Madrid, 2019) ao secretariado para elaborar um relatório de síntese do NDC submetido pelas partes antes da COP 26. Tendo em vista o adiamento da COP 26 para novembro de 2021 e o impacto da pandemia COVID-19 no processo de preparação da NDC, o secretariado decidiu emitir o relatório em duas edições: uma versão inicial em 28 de fevereiro de 2021 e a versão final antes da COP 26 (data ainda a ser estabelecida).
1.3. Uma reflexão sobre o nó górdio do Acordo de Paris e as Decisões de Paris: Por que as Decisões de Paris são a necessária e imprescindível salvaguarda para que o Acordo de Paris faça algum sentido?
O Acordo de Paris fixa seu objetivo na estabilização do aumento da temperatura mas:
a) não o traduz em nenhuma meta de redução de emissões dos gases;
b) deixa para os Estados a decisão de como colaborará para a diminuição, para, contraditoriamente ao item anterior, contribuir para se chegar ao objetivo do acordo fixado em termos da estabilização da temperatura;
c) isso limita muito a análise agregada das NDCs, conhecida como inventário global. Isso só pode ser feito a cada cinco anos, avaliando o total (não a contribuição de cada estado). E também seu resultado é apenas para fins informativos a fim de que os Estados o levem em consideração cada vez que desenvolvam uma nova NDC.
Ante esta situação, os “autênticos arquitetos do Paris 2015” transferiram para as Decisões de Paris a abordagem e a resolução das duas equações, por assim dizer, necessárias para que tudo fizesse algum sentido e tivesse alguma possibilidade mínima de sucesso final:
a) A Decisão 21 orienta o IPCC a traduzir cientificamente o objetivo de se estabilizar a temperatura da Terra em metas concretas de redução do nível global de gases do efeito estufa. E, de fato, no final de 2018, o IPCC publica o SR1.5, ou relatório sobre o aquecimento global 1,5 ° C, essencial para a implementação do Acordo de Paris, pois é aquele que estabelece os objetivos de redução de emissões a serem alcançados globalmente.
b) A Decisão 25 encarrega o secretariado da UNFCCC a analisar a soma dos resultados a serem produzidos em termos de redução das emissões com base na apresentação das NDCs. Esta análise no Acordo de Paris se limita a um inventário global a cada cinco anos. Dado que o mandato das Decisões é mais débil legalmente, não sabemos se as sucessivas reuniões da COP e da CMA tomarão ou não decisões como as tomadas em Chile-Madrid. Entretanto, as NDCs apresentadas pelos países são públicas. Portanto, sempre teremos organizações dispostas a realizar essa análise imprescindível, como, por exemplo, a UNEP-PNUMA, que elabora todo ano um relatório sobre a lacuna nas emissões, conhecido como o GAP.
1.4. O GAP nas emissões
Não é objetivo deste artigo comentar o relatório da UNEP-PNUMA, mas é necessário perceber em relação a ele que uma vez publicado o SR1.5 do IPCC, e, tendo em conta que a NDC pode ser consultado online, então “qualquer pessoa” pode fazer uma análise agregada do efeito da NDC apresentado pelos Estados, e comparar a redução dos gases do efeito estufa que as NDCs carregam com o objetivo global que, segundo o IPCC SR1.5, deveria ser sem nenhuma dúvida a referência para todo mundo.
O último relatório – do final de 2020 – do PNUMA-PNUMA sobre o GAP nas emissões já diz praticamente tudo na já famosa figura que anexamos a seguir. Esta figura mostra a enorme lacuna, de cerca de 32 GtCO2eq que até 2030 existe entre os compromissos das NDCs e a meta de redução de emissões compatível com a temperatura não ultrapassando 1,5 ° C..
2. Sobre os resultados do último relatório Síntese do Secretariado da UNFCCC de 26 de fevereiro de 2021: “Contribuições determinadas em nível nacional, NDC, no marco do Acordo de Paris”
O relatório de Síntese apresentado pelo secretariado da UNFCCC em 26 de fevereiro apenas corrobora o conteúdo do relatório da UNEP-PNUMA, e nos dá um quadro mais atualizado considerando todas as NDCs apresentadas até 31 de dezembro de 2020.
1. É importante destacar que ao longo de 2020 as partes do Acordo de Paris foram instadas a atualizar e tornar mais ambiciosas suas propostas de NDCs. O objetivo do relatório era justamente visualizar o enriquecimento dos objetivos. Mas, no final de 2020, apenas 48 NDCs representando 75 partes, responsáveis por aproximadamente 30% das emissões globais de gases do efeito estufa, haviam sido atualizadas. Devido aos impactos da pandemia, presume-se que o prazo para atualização delas se estenda até o início da COP26, em novembro de 2021. Por esse motivo, a secretariado apresentará outro relatório no próximo outono boreal (em data a ser definida) incorporando as últimas atualizações e já com as avaliações do total das 196 partes do Acordo de Paris.
No momento, segundo o relatório Síntese, a soma das 48 NDCs que foram atualizadas em 2020 aumenta apenas em 2,8% a redução das emissões prevista para 2030 em relação à versão anterior. Ou seja, a resposta ao apelo por um aumento do compromisso na NDC só trouxe um acréscimo de 2,8%. Como se não bastasse, o relatório também conclui que o efeito agregado das NDCs atualizadas no final de 2020 implica apenas numa redução de 0,5% nas emissões em 2030 em relação aos valores de 2010. E lembremos que de acordo com SR1.5, para não se exceder o limite de 1,5 ° C, as emissões antrópicas líquidas globais de CO2 devem diminuir em aproximadamente 45% até 2030 em comparação com o nível de 2010.
Não, não é piada, embora pareça. Para manter o aumento da temperatura em 1,5 ° C, a ciência nos diz que em 2030 as emissões devem estar 45% abaixo dos níveis de 2010; e todos os “esforços” políticos que os Estados apresentaram até agora irão reduzi-las em 0,5% … desde que sejam respeitados os compromissos das NDCs!!!
À guisa de epílogo
A situação é desalentadora. A redução de emissões previstas nas NDCs para 2030 nos colocam muito longe de alcançar os objetivos de estabilização de temperatura do Acordo de Paris. E, segundo científicos, isso colocaria a totalidade dos ecossistemas do planeta em condições nunca registradas ao longo do período geológico em que se desenvolveu nossa espécie.
Ao longo de 2021, alguns Estados que hoje são responsáveis pela maior parcela das emissões de gases do efeito estufa manifestaram a intenção de aumentar suas metas. Entre eles, espera-se que os EUA façam sua parte em 22 de abril na cúpula internacional de líderes mundiais sobre mudança climática convocada pelo presidente Biden. A China também indicou a intenção de atualizar seu NDC, assim como a Índia.
Claro, devemos ficar atentos ao relatório que o Secretariado da CQNUMC apresentará no outono, incorporando mais atualizações. No entanto, as notícias sobre possíveis atualizações dos EUA, China, etc. não apontam na direção que permitiria, mesmo em parte, mudar as conclusões pessimistas deste artigo. Parece que muitos países preferem buscar a chamada “neutralidade de carbono” em meados do século ao invés de se comprometer com uma redução ambiciosa na próxima década. Nem é preciso dizer que isso retira muita credibilidade do discurso delas. A nosso ver, perseguir a “neutralidade de carbono” antes de uma ação essencial que deve ser promovida com urgência é um grande equívoco que nos leva a mais uma década perdida na luta contra as mudanças climáticas. Erro que discutiremos em profundidade em nosso próximo artigo.
Portanto, com muito pesar, temos de dizer que se os números do atual relatório forem confirmados em setembro, não haverá espaço para esperanças.
Fonte: Carta Maior *Publicado originalmente em ‘Exclusiva‘ | Tradução de Carlos Alberto Pavam
Foto: (Reprodução/Exclusiva/bit.ly/33qpTAl)