Thomas Piketty: “A dívida pública é uma piada. A verdadeira dívida é com o capital natural”

23/06/15 | Lutas no Brasil

A degradação do capital natural é um risco muito maior. Esta é a verdadeira dívida. A ‘dívida pública’ com que nos enchem os ouvidos é uma piada!

Enquanto o desemprego atinge recordes em alguns países europeus, evidenciando o fracasso da política neoliberal, o economista Thomas Piketty lembra que a desigualdade tem um papel central na situação atual. Ele critica vigorosamente os pregadores do crescimento infinito e conclama a uma refundação do pensamento econômico que leve em conta o “capital natural”.

Qual a principal inspiração do seu livro O Capital no século XXI?

Meu trabalho desconstrói a visão ideológica de que o crescimento levaria automaticamente à diminuição da desigualdade. O ponto de partida da pesquisa foi a coleta, numa escala até então inédita, de dados históricos de rendas e patrimônios. No século 19, os economistas davam muito mais ênfase à distribuição de renda do que seus congêneres viriam a fazer a partir do meio do século 20. Mas, no século 19, havia poucos dados disponíveis. E até recentemente, este trabalho não tinha sido realizado de forma sistemática como fizemos, cobrindo dezenas de países, e mais de um século. Isso muda muito a perspectiva.

Nas décadas de 1950 e 1960, a visão dominante, e muito otimista, expressa sobretudo pelo economista Kuznets, era que uma redução espontânea da desigualdade ocorreria nos estágios avançados de desenvolvimento industrial. Kuznets tinha, de fato, constatado, em 1950, uma redução da desigualdade em comparação com 1910. Estava relacionada com a Primeira Guerra Mundial e a crise da década de 1930. E Kuznets sabia disso. Mas, na atmosfera da Guerra Fria, havia a necessidade de encontrar explicações otimistas – dirigidas especialmente aos países em desenvolvimento: “Não se tornem comunistas! O crescimento e a redução da desigualdade andam de mãos dadas, é só esperar”.

Mas vejamos: nos Estados Unidos e nos países desenvolvidos, a desigualdade encontra-se hoje em níveis muito elevados, equivalentes àqueles que Kuznets havia medido em 1910. Meu trabalho destrincha estas mudanças, a partir do fato de que não há uma lei econômica inexorável que conduz nem à redução da desigualdade nem ao seu aumento. Há um século, os países europeus eram mais desiguais do que os Estados Unidos. Hoje é o oposto. Não há determinismo econômico.

Você enfatiza a importância da classe média. É ela que permite a aceitação do aumento na desigualdade?


O desenvolvimento desta “classe média patrimonial” é provavelmente a maior transformação ocorrida em um século. Os 50% mais pobres da população nunca possuíram patrimônio e não possuem quase nada hoje. Os 10% mais ricos que, há um século, tinham tudo, ou seja, 90% ou mais do patrimônio, possuem hoje 60%, na Europa, e 70% nos EUA. O que continua a ser um nível muito alto de concentração.

A diferença é que, hoje, 40% da população, que há um século eram tão pobres quanto os pobres, viram sua situação se transformar em um século: este grupo central possuía, na década de 1970, até 30% do patrimônio total. Mas isso tende a diminuir, e hoje estamos mais próximos de 25%. Enquanto os 10% mais ricos continuam a ver sua riqueza aumentar.

O fato de este bloco central ver sua situação piorar explicaria o aumento das tensões sociais?

Sim. Pode surgir um questionamento generalizado de nosso pacto social quando muitos membros da classe média patrimonial sentem estar perdendo direitos, enquanto os mais ricos conseguem obter mecanismos de solidariedade. O risco é que grupos cada vez maiores acabem optando por soluções mais egoístas, de cunho nacional, incapazes de taxar os mais ricos. Um dos reflexos mais preocupantes é esta necessidade das sociedades modernas de dar sentido às desigualdades de força irracional para tentar…

Legitimar…

… Justificar a herança ou a captação de rendas – ou o poder, simplesmente. Quando os diretores de empresas destinam a si mesmos dez milhões de euros por ano, dizem fazê-lo em nome da produtividade. Os ganhadores explicam aos perdedores que as decisões são tomadas visando ao interesse de todos. Só que é muito difícil encontrar qualquer prova de que haja algum benefício comum em remunerar os diretores com dez milhões em vez de um milhão por ano.

Hoje, o discurso de estigmatização dos perdedores é muito mais violento do que há um século. Ao menos antigamente ninguém tinha o mau gosto de explicar que as domésticas ou os pobres em geral eram pobres por sua própria falta de mérito ou capacidade. Eram pobres porque eram.

Era a ordem social.

Uma ordem social que se justificava pela necessidade de haver uma classe que pudesse se concentrar em algo além da sobrevivência, e se dedicar a atividades artísticas, militares etc. Não digo que esta justificativa era correta, mas exercia menos pressão psicológica sobre os perdedores.

Estes perdedores, essa classe média central, pode escorregar para um ensimesmamento, nos moldes do discurso da extrema direita?

Claro. Este é o principal risco, e a Europa deve ficar atenta para o regresso aos egoísmos nacionalistas. Quando não conseguimos resolver os problemas sociais de forma tranquila, a tentação é colocar a culpa no outro: trabalhadores imigrantes, gregos preguiçosos etc.

Um aspecto importante de seu trabalho é como trata o “crescimento” econômico, destacando que taxas de crescimento elevadas, da ordem de 5% ao ano, são historicamente excepcionais.

Nós devemos nos acostumar a um crescimento estrutural lento. Até mesmo uma taxa de 1% ou 2% ao ano implica a invenção de fontes de energia que, por enquanto, não existem.

Sem energia abundante, não há possibilidade de crescimento de 1% ou 2%?

Haverá um momento em que não será mais possível. Desde a Revolução Industrial, entre 1700 e 2015, o crescimento mundial foi de 1,6% ao ano, metade disso em função do crescimento da população (0,8%) e a outra metade (0,8%), do PIB per capita. Isto pode parecer ridiculamente baixo para quem imagina que não é possível ser feliz sem uma retomada do boom do pós-segunda guerra, quando o crescimento era de 5% ao ano. Mas o crescimento de 1,6% ao ano durante três séculos multiplicou por dez a população e o nível de vida médio porque, acumulado, é realmente um crescimento enorme. E a população mundial passou de 600 milhões, em 1700, para sete bilhões hoje.

Poderíamos ser mais de 70 bilhões daqui a três séculos? Não se sabe se é desejável ou possível. Já a possibilidade de o padrão de vida melhorar dez vezes é pura abstração.

A revolução industrial no século 19 fez a taxa de crescimento passar de próximo de 0%, nas sociedades agrárias pré-industriais, para 1% ou 2% ao ano. Isto é um salto extremamente rápido. E só em fases de reconstrução acelerada após guerras, ou de recuperação de um país em relação a outros, alcança-se uma taxa igual ou maior que 5% ao ano.

Os políticos, a maioria de seus colegas economistas e os jornalistas econômicos, todos ainda esperam a retomada de um crescimento de 2% ou 3% ao ano, e alguns sonham até com 6% ou 7% na China.

Diante da história de crescimento, afirmar que não há felicidade possível sem retomar níveis de 4% ou 5% de crescimento ao ano é simplesmente um absurdo.

No entanto, você usou o termo “forte crescimento” em um artigo assinado com economistas alemães e ingleses.

Para mim, 1% ou 2% é um crescimento alto! Em uma geração, é um crescimento muito, muito forte!

Em 30 anos, um crescimento de 1% ou 1,5% ao ano significa que a atividade econômica aumentará em um terço ou 50% a cada geração. É uma taxa de renovação da sociedade extremamente rápida. Para que todos possam ter um lugar em uma sociedade que se renova a este ritmo, é preciso um sistema de educação, qualificação e acesso ao mercado de trabalho extremamente bem adaptado. Nada a ver com uma sociedade pré-industrial onde, de uma geração para a outra, a sociedade se reproduz de forma quase idêntica.

Por outro lado, a ideia de que nenhum crescimento mais é possível também me parece perigosa. Se reproduzido ao longo de gerações, é um processo bastante assustador, é o fim da humanidade.

Esta capacidade de crescimento demográfico reduzida a zero ou a taxas negativas reforça a importância da riqueza acumulada. Isso nos recoloca em uma sociedade de herdeiros, o que a França conheceu de forma bem acentuada no século 19, com a estagnação da população.

Faz sentido continuar a falar de crescimento do PIB quando a economia tem um enorme impacto sobre o meio ambiente?

Melhorar a avaliação e valorização do capital natural é uma questão central. A degradação do capital natural é um risco muito maior do que qualquer outro. Esta é a verdadeira dívida. A ‘dívida pública’ com que nos enchem os ouvidos é uma piada! É um mero jogo de palavras em que parte da população paga impostos para pagar juros a outra parte da população. O problema real é que não estamos em dívida com Marte, mas com o planeta Terra.

Já tivemos dívidas públicas igualmente importantes, no passado: equivalia a 200% do PIB em 1945, e a inflação acabou com ela. Foi o que permitiu que a França e a Alemanha voltassem a investir nos anos 50-60, e financiar a infraestrutura e a educação. Se tivéssemos que pagar essa dívida com os superávits primários – como hoje pedimos que a Grécia faça – estaríamos pagando aquela dívida até hoje.

Portanto, a dívida pública é um falso problema, porque os patrimônios financeiros, imobiliários e as mercadorias cresceram muito mais do que a dívida pública. Este aumento de produtos no mercado é muito mais importante do que a dívida pública, que pode ser eliminada com uma canetada.

No entanto, um aumento de 2° C na temperatura do planeta em 50 anos não é apenas um jogo de palavras. E hoje não dispomos de nada para resolver o problema do custo imposto ao capital natural.

Faz sentido um PIB que não integra o capital natural?

O PIB nunca faz sentido. Sempre utilizo o conceito de Renda Nacional: para passar do PIB à Renda Nacional, é preciso tirar a depreciação do capital. Se um país foi destruído por uma catástrofe, e todo o país estiver empenhado em reparar o que foi destruído, você terá um PIB extraordinariamente alto, enquanto a Renda Nacional será muito baixa.

É preciso levar em conta o que foi destruído, contabilizar o capital natural. Contabilizar o que é criado sem deduzir o que foi destruído é estupidez.

Por que não há mais trabalhos sendo feitos sobre esta contabilidade do capital natural?

Tentamos expandir a base de dados de Capital Mundial (World capital data base) para incluir o carbono, com pesquisadores do IDDRI (Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Relações Internacionais), entre outros. Mas você tem razão: por enquanto, não é um assunto suficientemente estudado. Nossas categorias de análise permanecem profundamente marcadas pelo boom do pós-guerra e pelo ideal de crescimento infinito.

O capital é muito poderoso: detém enorme poder político e os meios de comunicação. Estamos em um impasse?

Tendências passadas sugerem que as coisas podem mudar mais rápido do que imaginamos. A história da desigualdade, da renda, da riqueza e dos impostos é cheia de surpresas. O que vai acontecer ainda é totalmente incerto, e temos vários futuros possíveis. Além disso, há diferentes maneiras de resolver estes problemas: de forma mais ou menos rápida, mais ou menos justa e mais ou menos cara.

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