O nome da crise

25/05/15 | Lutas no Brasil

O nome da crise não é Dilma; é dominância financeira: como bloquear a república dos acionistas? Em que mesa negociar com os depósitos em paraísos fiscais?

Exceto em regimes escravocratas, quando o subalterno não dispunha sequer da própria vida, a distância entre ricos e pobres nunca foi tão pronunciada na trajetória da humanidade.

Assiste-se a uma desconexão bruta, física e estrutural entre os extremos. A exploração do trabalho continua a vigorar como a ponte entre os dois mundos, porém não mais com o testemunho direto do confronto entre a figura do patrão e a do assalariado.

As margens nem mesmo se enxergam mais.

Onde fica a sede da entidade ubíqua chamada fuga de capitais?

Em que rodovia é possível erguer uma barreira contra a república dos acionistas?

Em que mesa negociar a pauta de reivindicações aos depósitos em paraísos fiscais?

O poder do capital se camuflou em circuitos inefáveis e sem rosto.

A um toque de botão é capaz de desencadear ordens de compra e venda que podem esfarelar o comando de um governo; reduzir uma nação a uma montanha desordenada de escombros.

A história das nações, em certa medida, foi sequestrada pela campainha dos pregões; a abertura, e o fechamento, dos mercados de câmbio emite pronunciamentos diários em cadeia mundial, como uma junta militar ubíqua dissimulada em cifrões.

Nunca como hoje a luta pela vida digna remeteu tão linearmente ao controle do poder de Estado.

Único interlocutor capaz de dialogar com o ectoplasma da riqueza sem rosto, o próprio Estado porém se ressente da captura de suas entranhas pelos mercados.

Sem um vigoroso aggiornamento da democracia participativa nem mesmo ele é páreo para os interditos dos mercados.

A bonança recente do ciclo de commodities ofereceu ao Brasil uma década trufada por excedentes que ampliaram a margem de manobra do governo e amorteceram a percepção dessa polaridade extrema.

Os governos do PT souberam aproveitar o atalho para promover avanços indiscutíveis na perversão social criada pelo capitalismo brasileiro. Dobraram a aposta nessa via durante a crise deflagrada pela desordem neoliberal, em 2008.

Os dados são conhecidos. Embora o dever de ofício do dispositivo midiático se esmere em negá-los, o fato é que todo o vapor da caldeira conservadora hoje se concentra em desmontar aquilo que seus porta-vozes desmentem ter ocorrido.

Dê-se a isso o nome técnico que for. O que se mira é a regressão das conquistas sociais, salariais e políticas dos últimos doze anos.

As palavras do ministro Marco Aurélio Garcia no encontro estadual do PT, neste sábado, sintetizam as consequências deste epílogo conturbado: ‘Tenho absoluta convicção de que encerramos um ciclo importante da nossa história”, afirmou. “Vivíamos um momento de ganha-ganha. Todos podiam ganhar, os trabalhadores, os pobres, as classes médias, até os industriais e banqueiros. Havia um reordenamento da economia brasileira que permitia que todos ganhassem’.

‘Acabou’, advertiu o ministro para reverberar a gravidade do imperativo com uma assertiva não menos categórica: ‘As classes dominantes estão em clara ruptura conosco e, se não tomarmos cuidado, parte da nossa base social histórica também estará. O PT precisa urgentemente retornar a seus compromissos históricos’.

A chance dessa travessia não diz respeito apenas ao PT, que Marco Aurélio pontua como a simbologia de todo o campo progressista.

Ela depende, na verdade –como tem insistido Carta Maior— dessa convergência de uma frente ampla dotada de força capaz de obter o consentimento majoritário da sociedade para um projeto popular que ordene o passo seguinte do desenvolvimento brasileiro.

A falsificação dessa travessia em ligeirezas e amenidades que se satisfazem em fulanizar problemas e soluções reflete a ansiedade dos desafios em movimento.

Mas o gigantismo dos interesses a afrontar não pode ser subestimado pela boa intenção das soluções simplistas.

A muralha a vencer demanda consciência materializada em amplo engajamento social. Não se trata de defenestrar Levy ou Cunha.

Trata-se de sobrepor uma hegemonia a outra, cuja dominância nunca foi tão entranhada e, ao mesmo tempo, dissimulada, fluida, ardilosa e sempre que necessário virulenta e golpista.

O passo inaugural dessa construção consiste em dar um nome ao invisível. Implica ao mesmo tempo a ruptura com aquilo que na clarividente síntese de Marco Aurélio Garcia ‘acabou’.

O desafio a enfrentar é a riqueza que não reparte.

Não apenas o patrimônio acumulado.

Mas sobretudo as estruturas que a realimentam e banham de salvaguardas inoxidáveis.

Qualquer coisa menos que isso será insuficiente para evitar o rebote para o qual Marco Aurélio adverte. E o que é suficiente excede em muito a capacidade da iniciativa unilateral de qualquer força isolada.

A riqueza que não reparte é ontologicamente avessa à construção de um destino compartilhado, exceto se for induzida a isso por uma força de coordenação assentada em ampla legitimidade social e democrática.

Por mais que dissimule o rosto da sabotagem, seu rastro planetário deixa as marcas do poder autorreferente que se avoca igualmente apátrida e autorregulável.

Uma pegada sugestiva que atiça a prontidão das consciências é o consumo de luxo.

Ele atingirá US$ 3 trilhões em todo o planeta este ano.

Os vips brasileiros são reconhecidos em Paris ou em Miami como um dos mais lucrativos braços desse nicho nababesco.

Jatinhos, iates, mansões, jóias, arte, rejuvenescimento estético, turismo top, experiências únicas abastecem as gôndolas globais do supermercado seleto.

Seu tíquete de compra anual equivale ao PIB da Alemanha, a quarta maior economia do mundo, informa o jornal El País.

Não é que pareça excessivo, é que estamos de fato no reino do descabido. Do socialmente nefasto.

Apenas 85 membros do clube, os mais ricos entre os muito ricos, segundo a respeitada Oxfam têm um patrimônio de US$ 1,7 trilhão.

Concentram, assim, um pecúlio equivalente ao da metade mais pobre da humanidade formada por 3,5 bilhões de homens, mulheres, jovens, idosos e crianças.

Para quem acha que o consumo anual de U$ 3 trilhões é over, a Oxfam avisa: se abrirmos um pouco mais o foco para abranger o famoso 1% carimbado pelos ‘occupy’, vamos nos deparar com um patrimônio de US$ 110 trilhões.

Ou seja, quase duas vezes o PIB anual do planeta.

Seus detentores podem queimar US$ 3 trilhões por ano sem pestanejar.

Embala-os a certeza de que aplicações financeiras em praças generosas – a do Brasil paga os juros reais mais elevados do globo—cuidarão de regenerar seus portfólios, mantendo-os na dianteira de qualquer destinação produtiva do dinheiro –como mostrou Thomas Pikety.

O elo entre essa certeza e o resto da humanidade é um fosso que só faz crescer e agora abre fendas desconcertantes mesmo nas nações mais ricas.

Dados recentes da insuspeita OCDE mostram que entre seus 34 países membros a parcela dos 10% mais ricos detém hoje 50% da riqueza; os 40% mais pobres ficam com apenas 3% dela.

A contrapartida chocante é que em apenas quatro anos, de 2007 a 2011, a população que subsiste abaixo da linha de pobreza aumentou de 1% para 9,4% nesse mosaico.

Há uma exceção à tendência regressiva mundial, diz o relatório divulgado na semana passada.

O contrapelo se chama América Latina e Caribe, onde a desigualdade era um dado da natureza e deixou de sê-lo desde o final dos anos 90, quando passou a cair.

O Brasil, onde o piso salarial registrou um aumento real de 70% desde 2003, é a principal estrela dessa dissonância.

O país apostou que um esforço de distribuição de renda— conciliador em relação aos detentores da riqueza, graças ao excedente conjuntural propiciado pelo boom das commodities— permitiria desencadear um ciclo de crescimento mais rápido e sustentável.

Esse, o modelo que acabou, como adverte Marco Aurélio Garcia.

Desequilíbrios macroeconômicos reais explicam parte do colapso.

Um exemplo sabido: o câmbio valorizado. Ademais de incentivar importações baratas, ele atrofiou a exportação, subtraiu demanda à indústria local, levou a uma integração desintegradora com cadeias globais de suprimento e tecnologia.

A resistência à desordem mundial, por sua, vez, exauriu recursos públicos que se esgotaram antes que a crise iniciada em 2008 desse lugar a um novo ciclo de crescimento.

O conjunto explica em grande parte os impasses da economia e da democracia nos dias que correm.

Mas não explica tudo.

Quem vê no capitalismo apenas um sistema econômico, e não a dominação política intrínseca a sua encarnação financeira atual, subestima aspectos cruciais da encruzilhada brasileira.

Corre o risco de subestimar também a contagem regressiva alertada por Marco Aurélio Garcia para o retorno às raízes históricas do PT.

Ademais dos percalços macroeconômicos, o fato é que a insistência petista em deslocar o capital parasitário para a produção colidiu com interesses que tomaram gosto pelo vício de ganhar sem agregar riqueza à nação, nem se submeter a compromissos com a sociedade.

Disso não abdicarão facilmente, como tampouco ao fastígio do consumo de luxo.

Ao contrário do que aconteceu no caso das cadeias industriais, o Brasil atingiu o estado das artes nessa matéria.

A coagulação rentista de uma elite perfeitamente integrada aos circuitos da alta finança, amesquinhou a democracia brasileira, privando-a de instrumentos para dar à riqueza a sua finalidade social.

A regressividade inerente a isso está promovendo uma mutação individualista acelerada nas relações sociais no país, a exemplo do que se passa no resto mundo.

Ademais das justificativas macroeconômicas, portanto, o locaute do capital é o sintoma desse esgarçamento profundo entre um pedaço da riqueza e o destino da sociedade.

Um ensaio de seca na teta dos juros em 2013 foi suficiente para provocar a rebelião da oligarquia financeira contra o Estado e o governo.

A greve do capital contra a ‘Dilma intervencionista’ começou aí, quando a taxa de juro real foi comprimida a um piso histórico de 3,3% (no segundo governo FHC ela ficou em 18,5%, por exemplo; foi de 11,7% no segundo Lula).

O governo pode ter cometido tropeços nessa ousada operação de desbloquear a avenida do investimento removendo a barreira do juro alto, para induzir o fluxo à atividade produtiva.

Mas talvez o maior deles tenha sido subestimar a musculatura política necessária para deslocar os interesses descomunais situados do outro lado do braço de ferro.

Sem o discernimento engajado de ampla maioria da sociedade, coesa na determinação de afrontar a riqueza que não reparte, a façanha estava fadada a tropeçar na assimetria das forças em confronto.

A fixação da Selic, a taxa básica de juro da economia, é o ponto de partida dessa correlação de forças.

É daí que o mercado parte para colonizar o cálculo econômico de todos os demais setores com padrões de retorno da ganância rentista.

Vale a pena conhecer um pouco a extensão do que está contaminado por ela.

Em entrevista ao jornal Valor, no ano passado, o economista francês Pierre Salama apontou um desdobramento dessa irradiação: a explosão dos dividendos que se transformou, ela também, em um obstáculo ao investimento produtivo.

Pressionados a entregar fatias crescentes do lucro aos acionistas, os ‘managers’ corporativos o fazem em detrimento da retenção de lucro para investimento.

A observação de Salama desvela uma dimensão pouco discutida da desindustrialização brasileira.

Ela explicaria em parte também, segundo ele, ‘os efeitos indiretos sobre a primarização da economia’.

Outra consequência igualmente corrosiva destacada pelo economista francês: ‘Se você não tem uma melhora no nível da produtividade porque não tem uma taxa de investimento importante, a única maneira de ser mais competitivo é favorecendo a queda do salário direto e indireto’, diz .

Como?

Desmontando direitos sociais dos trabalhadores –‘o custo Brasil’.

Salama encerrou a entrevista como se desse uma aula de alternativas consequentes ao receituário ortodoxo agora vendido como fatalidade.

É forçoso coibir a ‘financeirização’, sentenciou para descascar o abacaxi em duas fatias principais: a) implica adotar um desassombrado controle de capitais e b) mas também uma reforma tributária que faça o rentista pagar mais impostos –inclusive os acionistas, isentos hoje num Brasil que corta recursos da educação para equilibrar o orçamento fiscal.

Insista-se, não são atalhos técnicos. É do poder político sobre os destinos da sociedade e a sorte do seu desenvolvimento de que se está falando.

O Brasil –e o PT em especial—sabe agora que o seu poder de veto não pode ser negligenciado.

O mesmo se dá na esfera global.

A desregulação dos mercados financeiros delegou ao sistema bancário internacional o poder supranacional de mobilizar e transferir riquezas, manipular e sabotar moedas.

Tudo blindado pela cumplicidade nem sempre passiva das agências de risco e dos organismos multilaterais.

É dessa usina que se originam os números obscenos do consumo de luxo, as cifras estonteantes dos depósitos em paraísos fiscais –onde a clientela brasileira detém a quarta maior riqueza depositada– e os valores desconcertantes de capitais ociosos, num mundo carente de investimento e empregos.

Uma das maiores fontes de pressão pela elevação da taxa de juro nos EUA parte dos detentores da riqueza sedentária.

Hoje ela se debate confinada num ambiente de baixo retorno e elevada liquidez (o juro norte-americano oscila entre zero e negativa desde 2008 e o Fed injetou US$ 1,5 trilhão no mercado para salvar o capitalismo dele mesmo).

O cavalo financeiro escoiceia a estrebaria acanhada exigindo de volta o pasto gordo e indiviso.

Bancos e por consequência seus acionistas veem suas margens naufragarem, afogados em depósitos sem alternativa de aplicação lucrativa.

No primeiro trimestre deste ano os depósitos totais no Morgan, por exemplo, subiram para US$ 1,3 trilhão nos EUA (aumento de US$ 4,5 bilhões em relação a dezembro de 2014); os do Wells Fargo somaram US$ 1,2 trilhão; aumento de US$ 28 bilhões no mesmo período. Assim por diante.

A pergunta é: por que na ausência de retornos da roleta, essa massa de recursos –que no circuito dos bancos sombra, onde impera o vale tudo, atinge US$ 75 trilhões, segundo o Financial Stability Board— não se desloca para o investimento produtivo?

A resposta: porque a superprodução de capitais é a contraface indissociável da crise de demanda gerada pela precarização do trabalho na era dos mercados financeiros desregulados.

São realidades univitelinas que se devoram.

Desse xeque-mate intrínseco à própria dominância financeira da época a sociedade não se livrará pela lógica de mercado. Ela é a própria crise.

O PT tentou um caminho intermediário.

Ao incentivar keynesianamente a demanda — e ensaiar uma fugaz redução da taxa de juro em 2013– buscou uma coordenação de mercado, confiante na regeneração do capital rentista em alavanca produtiva.

Enquanto o lubrificante da alta das commodities resistiu, a tentativa foi tolerada.

Mas a verdade é que a resposta esperada nunca aconteceu.

Pelo menos não na escala necessária –nem na indústria (culpa do câmbio, em parte), nem na infraestrutura (culpa do intervencionismo da Dilma, alega-se).

O fato de não ter acontecido impõe uma revisão do keynesianismo que descuidou do câmbio como o padeiro descuida do fermento e da lenha no forno.

Mas não basta.

E dificilmente teria bastado sem que se tivesse providenciado –até para tornar viável a maxidesvalorização competitiva— aquilo que continua a faltar.

Falta a ferramenta política dotada de discernimento claro sobre a engrenagem a afrontar.

O capitalismo quanto mais dá certo, mais dá errado, na medida em que seu próprio movimento de expansão espreme e estreita o alicerce social do qual, paradoxalmente, extrai sua valorização.

O nome da crise, portanto, não é Dilma, ou voluntarismo ‘lulopetista’, como quer o sociólogo da dependência desfrutável.

O nome da crise é a dominância financeira que exacerbou mecânica da riqueza que não reparte.

O antídoto a ela é a coordenação política da economia pela democracia social.

Isso não exime o PT de uma delicada travessia de autocrítica.

Como exortou Marco Aurélio Garcia: ‘é preciso, urgentemente, retornar às raízes históricas’.

Acrescente-se, porém: o retorno só terá sucesso ao lado de outras forças e movimentos, sem os quais será muito improvável reunir o fôlego para chegar onde é preciso.

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