Inação diante da morte de mulheres negras é perpetuar o genocídio da população negra

27/11/15 | Lutas no Brasil

Quero falar de uma morte psicológica que é banalizada. Um assassinato silenciado. Uma morte silenciosa.

Este é o mapa da violência contra a mulher de 2015 com os dados de homicídio com recorte de raça [1].

 

 

 

 

 

 

 

Essa morte aqui mensurada é física. E penso ser de total importância falar sobre ela. Questionar onde, como, por que ela ocorre. Sem perder de vista que precisamos depois dessas discussões saber o que será feito. Inação política perante aos números é uma forma ideológica de manter a ordem. É uma forma racista de perpetuar um processo de genocídio da população negra.

Porque genocídio não é só aquilo que você viu no filme Hotel Ruanda na quinta série. Genocídio também é o que se fazia na década de 1980, quando era propagada a prática de histerectomia das mulheres negras sem sua permissão. Genocídio é não enfrentar essa falsa sociedade laica, onde a mulher que mais morre pelo aborto são negras.

Genocídio é esse mapa.

Mas eu não quero só falar dessa morte que é quantificada em valas rasas ou corpos pra faculdades de medicina. Quero falar de uma morte psicológica que é banalizada. Um assassinato silenciado. Uma morte silenciosa.

Mulheres negras (ou pra você entender melhor: mulatas, moreninhas, pardas…) muitas vezes são objetos de desejo dos homens (e mulheres também). Reafirmo a palavra objeto com intuito de deixar evidente que são como objetos o desejo.

— Objetos a serem experimentados (“Nunca peguei uma moreninha. Como deve ser?” “Como deve ser o sexo de uma negra?”);

— Objetos a serem reajustados (“Por que não alisa esse cabelo?” “Por que você não faz cirurgia nesse nariz?” “Como você não tem bundão?”)

— Objetos a serem peça cultural de exposição (“cadê seu samba no pé? E o funk?” “Como assim você não tem vozeirão?” “Canta Cartola pra gente?”)

— Objetos de aprendizado

(“como é ser negra?” )

Objetos que como tais não podem sofrer nenhum tipo de dor com tudo isso. Devem ser subservientes e pedagógicos com seus próximos diante de todas as chagas que se abrem. E sem nenhuma proposta terapêutica cutucam as chagas e querem nossa paciência, nossa neutralidade aos sentimentos para ensinar aos outros.

Penso que cabe entender um dos motivos pelos quais a população negra é objetificada. Ela sofre com isso porque a forma de se aceitar aquilo que é marginalizado é dando o tom de objeto que pode ser consumido, da mesma forma que descartado. Entender os negros como pessoas, como seres humanos, é destituir privilégios, é aceitar a beleza negra, é reconhecer que temos sentimentos, é se indignar diariamente com a história, é saber que a África não é só Guerra ou Savana.

Mas voltando para a questão do assassinato silencioso (ou gritante nas mentes, nas noites chorosas de cada uma) que também acontecem com mulheres negras, ele não é debatido, nem conversado nas rodas de feminismo, ou ainda entre nossas mães, tias, primas. Se ele é tão latente por que não falar? Por quê? Por que as mulheres negras nesses espaços de feminismo não se reconhecem na pauta de liberdade sexual? Será por que ela sempre foi a estuprada pelo senhor de engenho? Ou por que ela é a estuprada pelo “boy” que diz que ‘aprendi muito com você, mas um compromisso com você não dá’?

Usei a palavra estupro intencionalmente, quero dar outros sentidos e explico. Porque isso de ser usada, mata também. Mata e não deveria ser banalizado. Não deveria ser diminuído. Deveria estar no mapa da violência de 2015 de homicídio contra a mulher. Se você acha esse gráfico absurdo, é que você não sabe que ele ainda pode ser subnotificado.

Essa coisa de que devemos ser independentes, buscar nossa felicidade sozinhas. É muito lindo e maravilhoso quando existe essa escolha individual. Mas quando essa mulher quer buscar uma vida a dois (já falo da vida a três, quatro, cinco) o que existe pra ela é como se a relação fosse um estágio para o cara (a cara), no qual ele aprende, sabe reproduzir um discurso, porém não há compromisso com seus sentimentos (porque ela é um objeto) e seu preterimento é factual. E quando ela decide encarar um relacionamento “aberto” é sabido que seu espaço ali é secundário, e piora mais ainda quando se trata de uma relação inter-racial, quando a escolha da mulher branca é sempre em primeiro lugar e mais uma vez lhe resta o preterimento (porque a mulher negra é forte, vai superar). Um terceiro ponto que queria ainda abordar dentro dos relacionamentos – vale para relação amorosa, assim como nas amizades – é que você rejeitar e combater qualquer papel opressor (seja racista, machista, LGBTfóbico) é sinal de intolerância à pessoa que você ama, de reatividade, como se isso não fizesse parte da construção do relacionamento. O silêncio se torna a chave pra ter amigos e um companheiro (amigas e companheira).

Mulheres, principalmente negras, compartilhem suas histórias com suas amigas negras; quando possível busque ajuda terapêutica (se bem que às vezes isso seja pior, posto que não temos pessoas formadas para lidar com isso, muito menos temos um SUS que dê esse suporte ou dinheiro para pagar… ); falem sobre essa dor que adoece e mata, mas respeite seu tempo, não se cobre demais; você não é a única nessa história, não é culpa sua, não sinta-se envergonhada por isso; chore o tempo que for preciso, mas se erga (e você irá se erguer) porque somos a resistência viva. Somos o orgulho de nossas irmãs, somos a esperança de nossas crianças, sejamos o AFROntamento nessa sociedade racista.

Em tempo: Quando uma mulher chega pedindo ajuda a alguém (amiga, médico, enfermeira — psicólogo?) muitas vezes seus sofrimentos são reduzidos à histeria (termo em desuso), drama, falta de autocuidado. E quando isso se remete à mulher negra o resultado é bem pior. Pior porque essa mulher negra é forte, guerreira, não sente dor – nem física, nem psicológica.

Vou tentar explicitar: Mulher, negra, jovem em depressão que resiste com seu cabelo, cor, nariz, curvas (ou não curvas) e não tem um companheiro. Sendo que não ter um companheiro uma queixa para seu sofrimento. Uma das respostas que essa mulher ouve é que se ela tivesse um cabelo arrumado, ou nem tanto beiço, ou um nariz mais fininho, ou.. Ou.. Ou.. Sua possibilidade de ter alguém seria maior. Entende isso?

Querem enterrar nossa cor, nossos traços, nossa história, nos enterrar. Mas somos sementes.

* Monique França Freixo é estudante de  Medicina da UERJ, membra do Coletivo de Estudantes Negros e Negras da Medicina – NegreX, e Coordenadora de Políticas de Saúde da Direção Executiva Nacional de Estudantes de Medicina – Denem

Fonte: Carta Maior
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

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